Competência da Justiça Eleitoral para julgamento dos crimes comuns conexos

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Um dos princípios fundamentais norteadores do processo penal no Estado democrático de Direito é o do juiz natural, intimamente ligado ao direito constitucional de todo cidadão a um julgamento imparcial.

Todo indivíduo tem direto de ser julgado perante o juiz dotado de competência consoante regras legais objetivas previamente estabelecidas. É o que se extrai do artigo 5º, LIII da CF: “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente“.

Nesta linha, a Carta Magna também veda, de forma absoluta, a designação de juízos ou tribunais de exceção (CF, artigo 5º, XXXVII). Por essa razão, o STF [1] tem entendido que: “O princípio do juiz natural não apenas veda a instituição de tribunais e juízos de exceção, mas também impõe que as causas sejam processadas e julgadas por órgão jurisdicional previamente determinado, a partir de critérios constitucionais de repartição taxativa de competência, excluída qualquer alternativa à discricionariedade.

O Código de Processo Penal prevê, em seu artigo 564, I, a incompetência do juiz como causa de nulidade. Na hipótese de incompetência em razão da matéria, a nulidade decorre de ofensa direta ao Texto Constitucional, o qual estabelece as matérias que serão julgadas pela justiça federal, ressalva a competência da justiça eleitoral e prevê competência residual da justiça comum.

A incompetência ratione materiae, portanto, implica em violação ao princípio do juiz natural e, consequentemente, em nulidade absoluta. No mesmo sentido, entendimento do STJ: “A incompetência absoluta em razão da matéria verificada na espécie constitui nulidade de ordem pública que pode ser conhecida a qualquer tempo, inclusive de ofício e até mesmo em recurso especial. O reconhecimento da incompetência absoluta do Juízo implica nulidade dos atos decisórios por ele praticados” [2].

Não se trata de mera violação de formalidade legal mas de desrespeito ao direito constitucional do cidadão de ser julgado pelo órgão dotado de atribuição jurisdicional por regras previamente fixadas, acarretando afronta aos princípios constitucionais do devido processo legal, ampla defesa, contraditório, publicidade, motivação das decisões judiciais, juiz natural, dentre outros [3]. Na mesma linha, Ada Pellegrini: “O ato processual inconstitucional, quando não juridicamente inexistente, será sempre absolutamente nulo, devendo a nulidade ser decretada de ofício, independentemente de provocação da parte interessada” [4].

Essa é a mais grave forma de nulidade, na medida que sendo absoluta, jamais se convalida, não preclui e pode ser alegada a qualquer tempo, mesmo após o trânsito em julgado da sentença condenatória.

A Constituição de 1988 dedica seção própria à Justiça Eleitoral (Seção VI), dispondo sobre sua organização, composição e competências (artigo 121 e ss.). Por seu turno, o artigo 109, inciso IV, ao estipular a competência criminal da Justiça Federal, ressalva, expressamente, os casos da competência da Justiça Eleitoral: “Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar: IV – os crimes políticos e as infrações penais praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesse da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas, excluídas as contravenções e ressalvada a competência da Justiça Militar e da Justiça Eleitoral“.

A Lei nº 4.737/1965, que instituiu o Código Eleitoral, traz em seu artigo 35, II de forma cristalina a competência privativa da Justiça Eleitoral para processar e julgar os crimes eleitorais e dos crimes comuns conexas“Art. 35. Compete aos juízes: II – processar e julgar os crimes eleitorais e os comuns que lhe forem conexos, ressalvada a competência originária do Tribunal Superior e dos Tribunais Regionais”.

Como se verifica, tanto a Constituição quanto a legislação infraconstitucional reconhecem a Justiça Eleitoral como jurisdição especializada, dotada de competência exclusiva para julgar os crimes eleitorais, inclusive os que lhes sejam conexos.

Conexão é o vínculo, o liame, o nexo que se estabelece entre dois ou mais fatos, o qual os torna entrelaçados por algum motivo, sugerindo a sua reunião no mesmo processo, para que sejam julgados pelo mesmo juiz, diante do mesmo compêndio probatório e com isso se evitem decisões contraditórias [5]. São efeitos da conexão: a reunião de ações penais em um mesmo processo e a prorrogação da competência.

O Código de Processo Penal ao estabelecer as regras de determinação da competência em razão da conexão estipula que, nos casos de concorrência entre a Justiça comum e a Justiça especializada, deverá prevalecer esta última: “CPP, art. 78: Na determinação da competência por conexão ou continência, serão observadas as seguintes regras: IV – no concurso entre a jurisdição comum e a especial, prevalecerá esta“.

Na hipótese de crime eleitoral cometido em conexão com delitos comuns, incide o princípio da especialidade e faz prevalecer a competência da Justiça Eleitoral sobre as demais, nos termos dos artigos 35, II, do Código Eleitoral e 78, IV, do Código de Processo Penal.

Outra não é a conclusão de Guilherme de Souza Nucci [6] defende que “caso exista um crime eleitoral conexo com um crime comum, ambos serão julgados na Justiça Eleitoral“. E ainda, Aury Lopes Jr [7] reforça que se houver conexão entre crimes comuns e eleitorais, “a Justiça Eleitoral prevalece sobre as demais (salvo a militar, que cinde), atraindo tudo para a Justiça Eleitoral (art. 78, IV)“.

Esse também o entendimento do STJ em mais de uma oportunidade. No AgRg na Ação Penal 865- DF [8], relator miinstro Herman Benjamin: O Supremo Tribunal Federal, intérprete maior da Constituição Federal, já teve oportunidade de se debruçar sobre o tema por diversas vezes, firmando entendimento de que a Justiça Eleitoral é competente para o processo e julgamento dos crimes eleitorais e dos comuns que lhe sejam conexos, na exata dicção dos artigos 35, inciso II, do Código Eleitoral e 78, inciso IV, do Código de Processo Penal”.

Nos embargos de declaração no Inquérito 1.181/DF[9], a Corte Especial do STJ, por unanimidade, reafirmou seu entendimento anterior de foro prevalente da justiça eleitoral para processar e julgar crimes eleitorais e delitos a estes conexos: “(…) a apuração da prática de crimes eleitorais e conexos é de competência do Juízo Eleitoral da 177ª Zona Eleitoral de Curitiba (…)”.

Esse também o entendimento do STF no bojo do Inquérito 4.435/DF [10]“Compete à Justiça Eleitoral julgar os crimes eleitorais e os comuns que lhe forem conexos — inteligência dos artigos 109, inciso IV, e 121 da Constituição Federal, 35, inciso II, do Código Eleitoral e 78, inciso IV, do Código de Processo Penal“. Em seu voto, o relator, ministro Marco Aurélio é enfático ao afirmar que: “A ressalva prevista no artigo 109, inciso IV, bem assim a interpretação sistemática dos dispositivos constitucionais, afastam, no caso, a competência da Justiça comum, federal ou estadual, e, ante a conexão, implica a configuração, em relação a todos os delitos, da competência da Justiça Eleitoral”.

O ministro Ricardo Levandowsi asseverou: “Ainda que se cogite, apenas para argumentar, da hipótese de que também teriam sido praticados delitos comuns, dúvida não há, a meu ver, de que se estaria, em tese, diante de um crime conexo, nos exatos termos do art. 35, II, do referido Codex (eleitoral). Em casos semelhantes, de conflito de competência entre a Justiça comum e a especializada, a orientação jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal, com o intuito de evitar possíveis nulidades, assenta que: […] em se verificando […] que há processo penal, em andamento na Justiça Federal, por crimes eleitorais e crimes comuns conexos, é de se conceder habeas corpus, de ofício, para anulação, a partir da denúncia oferecida pelo Ministério Público Federal, e encaminhamento dos autos respectivos à Justiça Eleitoral de primeira instância”.

Segundo o ministro Gilmar Mendes: “Há uma ratio igualmente relevante, sob o ponto de vista constitucional, para a atribuição à Justiça Eleitoral da competência para julgamento dos crimes eleitorais e conexos, que é a preocupação com o bom funcionamento das regras do sistema democrático e com a lisura dos pleitos eleitorais. A jurisprudência do STF pacificou-se no sentido de admitir a prorrogação da competência em favor da Justiça Eleitoral, mesmo quando relativo a fatos de competência da Justiça Federal ou nas hipóteses de foro por prerrogativa de função — casos definidos como de competência absoluta em razão da matéria ou da pessoa”.

No mesmo sentido, ministro Celso de Mello: “A competência penal da Justiça Eleitoral se estende ‘ex vi’ do que prescreve o art. 78, inciso IV, do Código de Processo Penal, aos delitos que, embora incluídos na esfera de atribuições jurisdicionais da justiça federal comum, guardem relação de conexidade com aquelas infrações delituosas eleitorais referidas no Código Eleitoral”.

A mesma orientação foi adotada em outros julgados da Suprema Corte, como na PET 5.700/DF [11], na qual o próprio procurador-geral da República, à época, opinou pela remessa dos autos à justiça eleitoral por constatar possível prática de “caixa 2”, tipificado no artigo 350 do Código Eleitoral, em conexão com o crime de lavagem de dinheiro (Lei 9.613/1998, artigo 1º, § 1º).

Por todo o exposto, conclui-se que a justiça eleitoral é constitucionalmente reconhecida como especial com competência exclusiva para julgamento das questões de natureza eleitoral e delitos conexos, uma vez que, em caso de concurso entre a jurisdição comum e a especial, prevalecerá esta última, reunindo-se os processos por força da conexão perante o juízo dotado de jurisdição especial, sob pena de nulidade absoluta, por se tratar de competência em razão da matéria.

A decisão proferida por juízo incompetente em razão da matéria afronta diretamente a CF e configura vício de tamanha gravidade que pode ser reconhecido a qualquer momento, inclusive após o trânsito em julgado. Finalmente, por configurar hipótese de nulidade absoluta, deverão ser declarados nulos todos os atos processuais praticados, decisórios e não decisórios.

[1] HC 110.925, Relator (a): Min. DIAS TOFFOLI, Primeira Turma, julgado em 10/04/2012, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-092 DIVULG 10-05-2012 PUBLIC 11-05-2012

[2] STJ – AgInt no REsp: 1.746.065 SP 2018/0137507-3, Relator: Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, data de julgamento: 25/05/2021, T3 – TERCEIRA TURMA, data de publicação: DJe 04/06/2021

[3] Capez, Fernando. Curso de Processo Penal. 28ª edição. São Paulo: Saraiva Educação, 2023, pg. 456.

[4] Grinover, Scarance e Magalhães. As nulidades no processo penal. 3ª ed. São Paulo. Malheiros

[5] Capez, Fernando. Curso de Processo Penal. 28ª edição. São Paulo: Saraiva Educação, 2023

[6] Código de Processo Penal Comentado, 11ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012. p. 250

[7] Lopes Jr., Aury. Direito Processual Penal. 16ª edição. São Paulo: Saraiva Educação, 2019.

[8] STJ – AgRg na APn: 865 DF 2016/0225218-9, Relator: Ministro HERMAN BENJAMIN, Data de Julgamento: 07/11/2018, CE – CORTE ESPECIAL, Data de Publicação: DJe 13/11/2018

[9] STJ – EDcl nos EDcl no Inq: 1181 DF 2017/0137230-5, Relator: Ministro OG FERNANDES, Data de Julgamento: 21/11/2018, CE – CORTE ESPECIAL, Data de Publicação: DJe 08/02/2019

[10] Inq 4435 AgR-quarto, Relator (a): Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 14/03/2019, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe 21-08-2019.

[11] STF – Pet: 5700 DF – DISTRITO FEDERAL, Relator: Min. CELSO DE MELLO, Data de Julgamento: 22/09/2015, Data de Publicação: DJe-190 24/09/2015

 

 

Fernando Capez, procurador de Justiça do MP-SP, mestre pela USP, doutor pela PUC, autor de obras jurídicas, ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP, presidente do Procon-SP e secretário de Defesa do Consumidor.


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