Fraude contábil das Lojas Americanas e suas possíveis implicações penais

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Considerada uma das maiores redes varejistas do Brasil, as Lojas Americanas se tornaram protagonista de um escândalo financeiro de dimensão continental, acarretando em prejuízos a acionistas e incertezas em boa parte do mercado.

A questão perpassa a ocultação de um rombo financeiro advindo de empréstimos captados pela empresa para financiar o pagamento de fornecedores, que, indevidamente, foram registrados como pagamentos a fornecedores e não como débitos financeiros.

Com patrimônio líquido que atinge os R$ 5 bilhões e valor de mercado de R$ 11 bilhões, a empresa se viu impossibilitada de arcar com o pagamento dos juros da dívida, que depois de recalculada, alcançou o patamar de R$ 50 bilhões.

A consequência da manobra contábil não demoraria a vir. Em pouco mais de uma semana as ações da empresa caíram 80%, representando perda de R$ 10 bilhões em seu valor. Já para os fundos de investimento detentores de papéis das Americanas, as perdas chegaram a R$ 4 bilhões em apenas um dia.

Visando a se preservar de eventuais ações executórias de credores, a companhia obteve junto ao TJ-RJ (Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro) liminar de 30 dias para preparação de futura recuperação judicial. Poucos dias depois, o mesmo tribunal concedeu liminar autorizadora de ação de execução de R$ 1,2 bilhão ao banco BTG.

Ultrapassando as fronteiras brasileiras, o Bank of America e o Goldman Sachs, os quais mantinham contratos de derivativos com a Lojas Americanas, também ajuizaram ações executórias e indenizatórias ante a varejista.

Além da fraude contábil, o que mais causou espanto foi a inércia dos mecanismos de controle do mercado de capitais, dentre os quais, a Comissão de Valores Imobiliários (CVM), a bolsa de valores B3 e a auditoria realizada pela PwC, incapazes de detectar as inconsistências feitas na conta da empresa por um período de quase cinco anos.

Para além das nefastas consequências na economia brasileira, faz-se necessário analisar a questão sob o ponto de vista jurídico-penal. Mesmo diante da imensidão de ações executórias e indenizatórias, dentro e fora do país, as fraudes perpetradas pela Americanas podem gerar diversas ações penais. Preceitua o artigo 1º da Lei nº 8.137/90 que “constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas:

IV – elaborar, distribuir, fornecer, emitir ou utilizar documento que saiba ou deva saber falso ou inexato”, atribuindo pena de reclusão de 2 a 5 anos, e multa.
De igual forma, diz o art. 3º, VII e X, da Lei nº 1.521/51, que é crime contra a economia popular: “VII – dar indicações ou fazer afirmações falsas em prospectos ou anúncios, para fim de substituição, compra ou venda de títulos, ações ou quotas;  X – fraudar de qualquer modo escriturações, lançamentos, registros, relatórios, pareceres e outras informações devidas a sócios de sociedades civis ou comerciais, em que o capital seja fracionado em ações ou quotas de valor nominativo igual ou inferior a um mil cruzeiros com o fim de sonegar lucros, dividendos, percentagens, rateios ou bonificações, ou de desfalcar ou de desviar fundos de reserva ou reservas técnicas”, com pena de detenção de 2 a 10 anos, e multa.

No que concerne ao inciso VII, a conduta vem representada pelos verbos “dar” (fazer, realizar) e “fazer” (realizar, efetivar), informações falsas referentes a empresas, sociedades ou instituições financeiras detentoras de títulos, ações ou quotas para negociação, em bolsa de valores ou fora dela.

O elemento subjetivo do tipo é dolo específico consistente na finalidade de substituição, compra ou venda de títulos, ações ou quotas. Consuma-se com o fornecimento da indicação ou com a afirmação falsa, independentemente da efetiva substituição, compra ou venda de títulos, ações ou quotas.

Quanto ao inciso X, a conduta vem representada pelo verbo “fraudar” (burlar, enganar), de qualquer modo, escriturações, lançamentos, registros, relatórios, pareceres ou outras informações. O elemento subjetivo do tipo é o dolo específico de sonegar lucros, dividendos, porcentagens, rateios ou bonificações, ou, ainda, de desfalcar ou desviar fundos de reserva ou reservas técnicas. Assim como no inciso VII, consuma-se com a prática da fraude, independentemente da obtenção da finalidade específica prevista pelo agente.

Também é possível que a manobra contábil consista em crime contra o sistema financeiro nacional, tendo em vista que o artigo 6º da Lei nº 7.492/86, prevê pena de reclusão de 2 a 6 anos, e multa, para quem: “Induzir ou manter em erro, sócio, investidor ou repartição pública competente, relativamente a operação ou situação financeira, sonegando-lhe informação ou prestando-a falsamente”.

A ação também encontra correspondência na figura típica prevista no artigo 27-D da Lei nº 6.386/76: “Utilizar informação relevante de que tenha conhecimento, ainda não divulgada ao mercado, que seja capaz de propiciar, para si ou para outrem, vantagem indevida, mediante negociação, em nome próprio ou de terceiros, de valores mobiliários” — pena: reclusão de 1 a 5 anos, e multa.

Ao ser decretada sua recuperação judicial, os responsáveis pelas fraudes cometidas nas Lojas Americanas também ficarão sujeitos aos regramentos contidos na lei de falências. Versa o artigo 180 da Lei nº 11.101/05 que: “A sentença que decreta a falência, concede a recuperação judicial ou concede a recuperação extrajudicial de que trata o art. 163 desta lei é condição objetiva de punibilidade das infrações penais descritas na lei”.

João Paulo Martinelli e Leonardo Schmitt de Bem assim discorrem sobre o tema: “Quando a pessoa física pratica um fato típico, antijurídico e culpável, surge para o Estado uma permissão para puni-la. A punição não é algo certo, mesmo que a conduta do agente seja criminosa. Há a necessidade de um processo e de uma condenação com trânsito em julgado. A execução da pena é a concretização de um poder que emerge a partir do momento em que o crime é praticado. Esse poder, inicialmente abstrato, que permite ao Estado punir alguém, chama-se punibilidade”.

A ação delituosa das pessoas com poder decisório sob a empresa ficaria caracterizada na divulgação do rombo contábil, imediatamente sucedida de pedido de recuperação judicial, a fim de protegerem seu patrimônio de eventuais credores. Tanto é assim que, dias após a publicização das irregularidades, a liminar de recuperação judicial foi concedida pela 4ª Vara Empresarial da Capital do Rio de Janeiro.

Conforme o texto do artigo 168 da lei falimentar é crime “Praticar, antes ou depois da sentença que decretar a falência, conceder a recuperação judicial ou homologar a recuperação extrajudicial, ato fraudulento que resulte ou possa resultar prejuízo aos credores, com o fim de obter ou assegurar vantagem indevida para si ou para outrem” — pena: reclusão de 3 a 6 anos, e multa.

A reprimenda é aumentada de 1/6 a 1/3, se o agente: “elabora escrituração contábil ou balanço com dados inexatos; omite, na escrituração contábil ou no balanço, lançamento que deles deveria constar, ou altera escrituração ou balanço verdadeiros” (artigo 168, § 1º, I e II).

Trata-se de crime formal, uma vez que não é exigido prejuízo concreto para sua configuração. Basta, portanto, a simples prática fraudulenta com o propósito de obtenção de vantagem ilícita, exigindo-se, apenas, a vinculação da fraude a algum prejuízo possível, ainda que meramente potencial.

Esse, inclusive, é o posicionamento adotado pelo Superior Tribunal de Justiça: “(…) 3. Uma vez que o tipo penal do artigo 168 da Lei nº 11.101/05 tutela a conduta que possa causar prejuízo, desnecessária a demonstração de efetivo prejuízo, pois o crime é classificado como de perigo. Sendo assim, não é necessário demonstrar que a criação de uma outra empresa, do mesmo ramo comercial que a falida, efetivamente acarretou prejuízo aos credores”. Por essas mesmas razões, não é admito o conatus, já que qualquer ato fraudulento, mesmo que não cause gravame, será apto à consumação do crime.

O sujeito ativo do delito é aquele que inserir dado falso ou omitir dado verdadeiro do balanço contábil, a fim de, fraudulentamente, causar dano a credores empresa. Seus executivos, ocupantes de postos com poder decisório sobre a divulgação pública da higidez financeira da companhia, mesmo que deles não tenha emanado nenhuma ordem para fraudar as contas, também responderão como coautores, uma vez que sabedores da ilicitude, nada fizeram para corrigir as irregularidades.

No que tange à coautoria, por fim, dispõe o § 3º: “nas mesmas penas incidem os contadores, técnicos contábeis, auditores e outros profissionais que, de qualquer modo, concorrerem para as condutas criminosas descritas neste artigo, na medida de sua culpabilidade”. Os sujeitos passivos, por seu turno, são a coletividade de credores e a administração da justiça, representada pela regularidade do procedimento falimentar destinado à satisfação da vontade dos credores.

 

 

 Fernando Capez, procurador de Justiça do MP-SP, mestre pela USP, doutor pela PUC, autor de obras jurídicas, ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP, presidente do Procon-SP e secretário de Defesa do Consumidor.

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