Restrição à liberdade religiosa na pandemia e sua competência legislativa
Em função do aumento do número de casos de Covid-19 durante os anos de 2020 e 2021, alguns estados e municípios da Federação editaram decretos que mitigaram temporariamente algumas liberdades individuais, dentre as quais, a de reunião para fins religiosos. Em razão da natureza coletiva dos ritos presentes em várias religiões, à época argumentava-se que a aglomeração de pessoas em templos religiosos poderia disseminar mais facilmente o vírus.
Nesse sentido, o governo do estado de São Paulo editou o Decreto nº 65.563/21, que em seu artigo 2º, II, alínea “a” vedava a realização de cultos, missas e demais atividades religiosas de caráter coletivo. Diante disso, o Partido Social Democrático (PSD) ajuizou arguição de descumprimento de preceito fundamental pedindo a suspensão do dispositivo.
A tese defendida na peça argumentava que tais restrições não poderiam ser impostas, tendo em vista a violação do direito fundamental de liberdade religiosa e de culto, conforme prevê a CF, nos artigos 5º, VI e 19, I.
“Artigo 5º, VI. “É inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e suas liturgias.
Artigo 19. ‘É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios. I – Estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvenciona-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público’.”
Ao se debruçar sobre a causa, o STF (Supremo Tribunal Federal) julgou, por maioria de votos, improcedente o pedido, restando vencidos os votos dos ministros Dias Toffoli e Nunes Marques. Assim decidiu a Suprema Corte:
“É compatível com a Constituição a imposição de restrições à realização de cultos, missas e demais atividades religiosas presenciais de caráter coletivo como medida de contenção do avanço da pandemia da Covid-19.” [1].
A liberdade de crença ou de culto, popularmente chamada de “liberdade religiosa”, caracteriza-se como uma das mais basilares liberdades individuais previstas no repertório legal do século 20. Para que tenhamos a exata dimensão da relevância do direito, citamos, respectivamente os dispositivos previstos na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), Convenção Europeia de Direitos do Homem (1950), Convenção Interamericana de Direitos Humanos (1969) e Carta Africana de Direitos Humanos:
“Artigo 18. ‘Todo ser humano tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; esse direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença pelo ensino, pela prática, pelo culto em público ou em particular’;
Artigo 9º. ‘1. Qualquer pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião; este direito implica a liberdade de mudar de religião ou de crença, assim como a liberdade de manifestar a sua religião ou sua crença, individual ou coletivamente, em público ou em privado, por meio do culto, do ensino, de práticas e da celebração de ritos. 2. A liberdade de manifestar a sua religião ou convicções, individual ou coletivamente, não pode ser objeto de outras restrições senão as que, previstas em lei, constituírem disposições necessárias, numa sociedade democrática, à segurança pública, à proteção da ordem, da saúde e da moral públicas, ou à proteção dos direitos e liberdades de outrem’;
Artigo 12. ‘1. Toda pessoa tem direito à liberdade de consciência e de religião. Esse direito implica a liberdade de conservar sua religião ou suas crenças, ou de mudar de religião ou de crenças, bem como a liberdade de professar e divulgar sua religião ou suas crenças, individual ou coletivamente, tanto em público como em privado. 2. Ninguém pode ser objeto de medidas restritivas que possam limitar sua liberdade de conservar sua religião ou suas crenças, ou de mudar de religião ou de crenças. 3. A liberdade de manifestar a própria religião e as próprias crenças está sujeita unicamente às limitações prescritas pela lei e que sejam necessárias para proteger a segurança, a ordem, a saúde ou a moral pública ou os direitos ou liberdades das demais pessoas. 4. Os pais, e quando for o caso os tutores, têm direito a que seus filhos ou pupilos recebam a educação religiosa e moral que esteja acorde com suas próprias convicções’;
Artigo 8º. ‘A liberdade de consciência, a profissão e a prática livre da religião são garantidas. Sob reserva da ordem pública, ninguém pode ser objeto de medidas de constrangimento que vissem restringir a manifestação dessas liberdades’.”
Conforme nos ensina boa parte da doutrina, o tema deve ser interpretado sob dois prismas. No que tange à dimensão interna, a liberdade religiosa deve ser tida como a liberdade espiritual íntima do indivíduo de formatar seu próprio sistema de crenças, ideologia ou consciência. Tal direito se constitui como absoluto, não admitindo nenhum tipo de restrição, ou seja, a pessoa pode se conectar com os aspectos transcendentes que quiser. Por sua vez, a dimensão externa corresponde à liberdade de exteriorização, confissão e culto do sistema de crenças, que pode estar sujeito a alguma limitação. Independentemente dos elementos constitutivos da crença do indivíduo, sua materialização no mundo concreto, por meio de cânticos, orações, reuniões, procissões, rituais, danças, dentre outros, devem ficar adstritas à ordem legal, podendo sofrer limitações a depender do caso concreto.
Inclusive, há que se dizer que a Constituição também evidencia o duplo paradigma da liberdade religiosa. A dimensão interna, responsável por constituir os elementos de crença da pessoa, está prevista no artigo 5º, VI, e não se aplica exclusivamente à liberdade religiosa. A dimensão externa, por seu turno, encontra correspondência na liberdade de culto e exteriorização de seus elementos de fé, não podendo a lei interferir em sua liturgia, a não ser que assim determine algum mandamento constitucional de maior relevância [2].
Assim, o inciso VI, do artigo 5º, ao assegurar a liberdade dos cultos religiosos na forma da lei caracteriza-se como norma constitucional de eficácia contida, aquelas aptas a produzir todos os seus efeitos desde o momento da promulgação da Constituição, admitindo restrição posterior por parte do Poder Público. Outro exemplo de norma constitucional de mesma natureza é o mandamento contido no artigo 5º, XIII, segundo o qual “é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”.
No que concerne à compatibilidade formal entre o decreto do Estado de São Paulo e a Carta Magna, decidiu o STF que os entes federados possuem competência para legislar e adotar medidas sanitárias voltadas ao enfrentamento da emergência de saúde pública. Importante frisar que o entendimento da Corte coroou o sistema federativo cooperativo, sob o qual não há hierarquia ou sobreposição de interesses dos entes quando a temática for medida sanitária ou de saúde pública. A abordagem deve ser transversal e a competência é concorrente entre municípios, estados, Distrito Federal e União na implementação de políticas públicas de enfrentamento à pandemia [3].
Tampouco há que se falar em inconstitucionalidade material do decreto, tendo em vista que seu conteúdo estava de acordo com as recomendações médico-sanitárias da comunidade acadêmica internacional e OMS (Organização Mundial da Saúde). Por se tratar de um vírus absolutamente desconhecido, sem nenhum tipo de controle em sua disseminação ou tratamento eficaz para os infectados, as autoridades internacionais e os chefes de Estado se viram obrigados a adotar medidas extremadas com o objetivo de salvaguardar a saúde coletiva. Sem muita informação sobre o modo de contágio e os estágios da doença, as únicas unanimidades encontradas foram a paralisação das atividades econômicas não essenciais e a proibição de aglomerações de qualquer tipo.
Além da integridade física de cada indivíduo, a medida adotada encontrou guarida constitucional, pois buscou preservar a capacidade de atendimento da rede pública de saúde. Pela inexistência de imunidade coletiva, os primeiros meses de pandemia foram assustadores, com inúmeras pessoas com histórico de saúde relativamente satisfatório internadas ou indo à óbito. A procura dos hospitais foi tamanha que as redes pública e privada não deram conta da demanda, resultando em superlotação, falta de atendimento e agravamento do quadro de saúde daqueles que não conseguiram tratamento. Desta forma, a alternativa plausível foi o distanciamento social como meio de queda de contaminação, reservando, consequentemente, os leitos hospitalares apenas para os casos mais agudos.
[1] STF. Plenário. ADPF 811/SP, relator ministro Gilmar Mendes, julgado em 08/04/2021 (Info 1012).
[2] CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Principais julgados do STF e do STJ comentados. São Paulo. Ed. JusPodivm, 2022, p. 204.
[3] STF. Plenário. ADI 6341/DF. Relator ministro Edson Fachin, julgado em 20/07/2020 e publicado em 13/11/2020.