Os contratos de locação e o Código de Defesa do Consumidor

Compartilhe

Uma das dúvidas mais recorrentes de estudantes de Direito e consumidores em geral diz respeito à aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor (CDC) aos contratos de locação. Neste tema encontramos sólido posicionamento jurisprudencial no sentido de sua não aplicação, em que pese respeitáveis posicionamentos doutrinários contrários, como os de Cláudia Lima Marques, Flávio Tartuce, Daniel Amorim Assumpção Neves e Humberto Theodoro Júnior.

Sabemos que o CDC constitui um microssistema de proteção jurídica multidisciplinar, vez que dele emanam normas coordenadas que visam regular todos os aspectos de proteção e defesa dos consumidores. Seu artigo 2º conceitua consumidor como toda pessoa física ou jurídica, que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final. O texto do parágrafo único estende o entendimento ao coletivo de pessoas, ainda que indetermináveis, que tenham intervindo na relação de consumo.

É possível que as pessoas jurídicas de direito público figurem como consumidoras na relação de consumo, desde que demonstrada a sua vulnerabilidade. Nesse sentido, admite-se que um município, Estado ou a União sejam consumidoras. Ainda é equiparado a consumidor as vítimas de danos ocasionados pelo fornecimento defeituoso de produto ou serviço (CDC, artigo 17 — bystanders) e as pessoas, determináveis ou não, expostas às práticas comerciais ou contratuais abusivas (CDC, artigo 29).

Por sua vez, o artigo 3º define fornecedor como qualquer pessoa física ou jurídica, pública ou privada, brasileira ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados que desenvolvam atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos e serviços.

Diante dessas premissas, têm prevalecido na jurisprudência e em parte majoritária da doutrina que a locação de imóveis não se enquadra como contrato de consumo, vez que as relações locatícias são regidas por lei própria (Lei 8.245/81) e o locador não pode ser caracterizado como fornecedor ou prestador, haja vista que não exerce tal atividade com profissionalismo.

Nesse sentido, decidiu o STJ, conforme decisões que se seguem:

“Locação. Ação civil pública proposta em face de apenas uma administradora de imóvel. Cláusula contratual abusiva. Ilegitimidade ativa do Ministério Público. Estadual. Direito individual privado. Código de Defesa do Consumidor. Inaplicabilidade. 1. Nos termos do art. 29, III da CF e do art. 25, IV, alínea a, da L. 8.625/93, possui o Ministério Público como função institucional, a defesa dos interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos. 2. No caso dos autos, a falta de configuração de interesse coletivo afasta a legitimidade ad causam do Ministério público para ajuizar ação civil pública objetivando a declaração de nulidade de cláusulas abusivas constantes em contratos de locação realizados com apenas uma administradora do ramo imobiliário. 3. É pacífica a jurisprudência, nesta Corte, no sentido de que o Código de Defesa do Consumidor não é aplicável aos contratos locatícios, que são reguladas pela legislação própria. Precedentes. 4. Recurso especial desprovido” [1].

“Locação. Despesas de Condomínio. Multa. Código de Defesa do Consumidor. Inaplicabilidade. I – As relações locatícias possuem leis próprias que as regule. Ademais, Falta-lhes as características delineadoras da relação de consumo apontadas nos art. 2º e 3º da Lei nº 8.078/90” [2].

“Direito Empresarial. Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial. Contrato de locação firmado por sociedades empresárias. Inaplicabilidade do CDC. 1. A jurisprudência do STJ é firme ao negar a aplicação das normas do CDC aos contratos de locação, uma vez que estes são regulados por lei própria, a Lei n. 8.245/91” [3].

Todavia, em que pese pacificação jurisprudencial sobre o tema, há grandes doutrinadores do Direito que tem posicionamento contrário, dentre os quais, Flávio Tartuce e Daniel Amorim Assumpção Neves; Cláudia Lima Marques e Humberto Theodoro Júnior.

“Ressalve-se a opinião pessoal do presente autor – a partir das lições expostas por Cláudia Lima Marques quando da IV Jornada de Direito Civil (2006) – no sentido da possibilidade de subsunção do CDC para as hipóteses em que o locador é um profissional da atividade locatícia, sendo viável juridicamente qualifica-lo como prestador de serviços de moradia” [4].

“Mas, mesmo quando a locação é feita sem a participação da imobiliária, o proprietário é fornecedor e as regras do CDC visam apenas o reequilíbrio do contrato, a equidade, a justiça contratual, a qual não será, sem última análise, prejudicial à fornecedora” [5].

A interpretação dos autores demonstra tendência de alargamento do entendimento de que o CDC poderá ser aplicado às relações locatícias, desde que presentes algumas circunstâncias especiais. Primeiramente, vale destacar que condicionaram a aplicação do CDC ao locador que faz dessa atividade sua profissão; ou seja, aquele indivíduo que é proprietário de vários imóveis e os disponibiliza à locação com profissionalismo, fazendo dessa atividade seu ganha pão.

O segundo ponto diz respeito ao entendimento da incidência do CDC às relações estabelecidas com imobiliárias ou administradoras de imóveis que intermediaram o contrato de locação. Nesse caso, haverá relação de consumo, tanto do locador que contratou com a imobiliária ou administradora, quanto com o locatário que se utilizou da imobiliária ou administradora para locar o bem.

“Não se quer aqui defender a incidência da Lei. n. 8.079/90 às relações locatícias, mas sim às relações firmadas entre o locador e a administradora de imóveis ou entre esta e o locatário, como única forma viável de proteger aqueles que são os vulneráveis da relação” [6].

Bruno Miragem justifica a aplicação do CDC às imobiliárias e administradoras de imóveis, dizendo: “As relações de locação sendo intermediadas por um profissional-imobiliária ou administradora de imóveis tem-se neste polo da relação contratual a expertise, o conhecimento e a direção da relação contratual que se exige para a aplicação do CDC” [7].

Tal justificativa é ratificada pelo STJ:

“(…) 1. O contrato de administração imobiliária possui natureza jurídica complexa, em que convivem características de diversas modalidades contratuais típicas – corretagem, agenciamento, administração, mandato -, não se confundindo com o contrato de locação, nem necessariamente dele dependendo. 2. No cenário caracterizado pela presença da administradora na atividade de locação imobiliária se sobressaem pelo menos duas relações jurídicas distintas: a de prestação de serviços, estabelecida entre o proprietário de um ou mais imóveis e essa administradora, e a locação propriamente dita, em que a imobiliária atua como intermediária de um contrato de locação. 3. Na primeira, o dono do imóvel ocupa a posição de destinatário final econômico daquela serventia, vale dizer, aquele que contrata os serviços de uma administradora de imóvel remunera expertise da contratada, o know-kow oferecido em benefício próprio, não se tratando propriamente de atividade que agrega valor econômico ao bem. 4. É relação autônima e pode se operar com as mais diversas nuances e num espaço de tempo totalmente aleatório, sem que sequer se tenha como objetivo a locação daquela edificação. 5. A atividade da imobiliária, que é normalmente desenvolvida com o escopo de propiciar um outro negócio jurídico, uma nova contratação, envolvendo uma terceira pessoa física ou jurídica, pode também se resumir ao cumprimento de uma agenda de pagamentos (taxas, impostos e emolumentos) ou apenas à conservação do bem, à sua manutenção e até mesmo, em casos extremos, ao simples exercício da posse, presente uma eventual impossibilidade do próprio dono, tudo a evidenciar a sua destinação final econômica em relação ao contratante (…)” [8].

Por fim, entendemos que os posicionamentos firmados quanto à aplicabilidade do CDC aos contratos intermediados por imobiliárias e o afastamento da norma consumerista aos contratos firmados diretamente entre os particulares devem ser aplicados tanto aos imóveis destinados à moradia, quanto aos voltados para temporada, não havendo distinção quanto ao entendimento da norma conforme a natureza da destinação da locação.

[1] (STJ – REsp605.295/MG – 5ª Turma – rel. min. Laurita Vaz – j. 20.10.2009 – DJe 02/08/2010).
[2] (STJ – REsp 239.578/SP – 5ª Turma – rel. min. Feliz Fischer, ac. 08.02.2000, DJU 28.02.2000).
[3] (STJ – AgRg no AREsp. 41.062/GO, 4ª Turma – rel. min. Antônio Carlos Ferreira, ac. 07.05.2013, DJe 13.05.2013).
[4] TARTUCE, Flávio e NEVES, Daniel Amorim Assumpção, Manual de Direito do Consumidor, 7ª edição, p. 140.
[5] THEODORO JÚNIOR, Humberto, Direitos do Consumidor, 9ª edição, p. 401.
[6] ALMEIDA, Fabrício Bolzan de. Curso de Direito do Consumidor Esquematizado, 8ª edição, p. 168.
[7] MIRAGEM, Bruno. Curso de Direito do Consumidor, p.104
[8] REsp 509.304/PR, rel. min. Ricardo Villas Bôas Cueva, 3ª Turma, DJe 23.05.2013.

 

Fernando Capez, procurador de Justiça do MP-SP, mestre pela USP, doutor pela PUC, autor de obras jurídicas, ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP, presidente do Procon-SP e secretário de Defesa do Consumidor.

Compartilhe