O caso Robinho e os artigos 100 a 102 da Lei de Migração

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Condenado a nove anos de prisão e ao pagamento de 60 mil euros pela prática de violência sexual em grupo contra uma vítima albanesa, o ex-jogador de futebol Robinho encontra-se no centro de uma discussão jurídica de dimensão internacional, tendo em vista que o Ministério Público de Milão acionou o Ministério da Justiça italiano para que seu pedido de extradição fosse enviado ao Brasil.

Por se tratar de brasileiro nato que se encontrava em território nacional no momento do trânsito em julgado da condenação, não há dúvida quanto à impossibilidade de sua extradição para cumprimento de pena em território italiano — a chamada extradição executória — por força do mandamento constitucional contido no artigo 5º, LI: “nenhum brasileiro será extraditado, salvo o naturalizado, em caso de crime comum, praticado antes da naturalização, ou de comprovado envolvimento em tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, na forma da lei”.

Extradição executória é o processo pelo qual uma pessoa condenada por um crime em um país é entregue às autoridades desse mesmo país para cumprimento da pena imposta. Trata-se de forma de cooperação internacional entre países na luta contra o crime transnacional e a busca por maior efetivação da justiça. Não cabe extradição executória de brasileiro nato.

Tirante a hipótese de apresentação espontânea à Justiça italiana ou às autoridades de algum país com pacto de cooperação com a Interpol, enquanto permanecer no Brasil, não poderá ser entregue para cumprimento de pena no exterior.

Além disso, na data em que o crime foi supostamente cometido por Robinho, não havia nenhum dispositivo legal em vigor a autorizar a homologação de sentença condenatória estrangeira pelo Judiciário brasileiro. Com efeito, o CP, no seu artigo 9º, I e II, somente autorizava, e ainda autoriza, a homologação de sentença estrangeira em duas hipóteses: “obrigar o condenado à reparação do dano, a restituição e a outros efeitos civis; e sujeitá-lo à medida de segurança”.

Ocorre que, em novembro de 2017, entrou em vigor a Lei de Migração (Lei 13.445/17), a qual, em seus artigos 100 a 102, introduziu novos casos de homologação de sentença estrangeira, permitindo agora, a concessão do exequatur, ou seja, a autorização de cumprimento em solo brasileiro, também da condenação a pena de prisão. Deste modo, a partir do início de sua vigência, duas questões com repercussão no caso Robinho surgiram: (a) os artigos 100 a 102 da Lei de Migração se aplicam a brasileiro nato? (b) esses dispositivos podem retroagir para alcançar crimes cometidos antes de sua entrada em vigor?

Em ambas as questões, entendemos que a resposta é não!

Em primeiro lugar, faz-se necessário analisar o âmbito de incidência da Lei de Migração, para que, somente então, se analise a possibilidade de ela retroagir para prejudicar o agente. De acordo com seu artigo 1º: “a lei dispõe sobre os direitos e os deveres do migrante e do visitante, regula sua entrada e estada no País e estabelece princípios e diretrizes para as políticas públicas para o emigrante”, de onde se conclui que seu âmbito de incidência se restringe às figuras do migrante e visitante, definindo seus direitos e deveres, mas sem atingir o brasileiro nato. O texto do artigo 100 da mesma lei reforça tal entendimento ao dispor que a transferência da execução da pena de prisão somente poderá ser solicitada ou autorizada nas hipóteses de extradição executória, ou seja, somente será possível autorizar o cumprimento de pena de prisão imposta no estrangeiro para pessoas sujeitas à extradição, ou seja, migrantes e visitantes, jamais brasileiros natos. Evidenciando tal inaplicabilidade ao brasileiro nato, em razão da vedação de sua extradição, encontra-se o disposto no artigo 82, I, do mesmo diploma: “Não se concederá a extradição quando: I – o indivíduo cuja extradição é solicitada ao Brasil for brasileiro nato”. Ora, se o pressuposto para a homologação da condenação estrangeira para fins de cumprimento de pena de prisão é o cabimento da extradição, e se não cabe extradição de brasileiro nato, a conclusão é a de que não cabe exequatur para permitir no Brasil, execução de pena privativa de liberdade imposta no exterior, quando o condenado tiver nacionalidade originária.

Assim, somente restaria aplicar o disposto no CP, cujo artigo 9º, conforme já mencionado, só autoriza homologação de sentença estrangeira para fins de natureza civil ou cumprimento de medida de segurança.

Vencida a etapa da incidência da nova lei a brasileiros natos, passemos à análise da natureza jurídica dos dispositivos em questão e sua aplicação no tempo. O fato merece especial atenção, uma vez que o conteúdo contido nos artigos 100 a 102, Lei nº 13.445/17, tem repercussão no âmbito processual, o que, a princípio, poderia sugerir a aplicação do princípio tempus regit actum (CPP, artigo 2º), segundo o qual as normas de natureza processual têm incidência imediata e se aplicam aos processos em andamento ou posteriores, independentemente de serem prejudiciais ou não à situação do agente. A lei processual não se rege pelo princípio da irretroatividade in pejus.

Em que pese sua aparência de norma processual, os dispositivos supra são de natureza penal, pois não se limitam a estabelecer procedimentos ou ordenação de atos processuais, mas, muito além disso, expandem a pretensão punitiva do Estado, tornando mais intensa a satisfação da pretensão punitiva. Tem natureza penal toda e qualquer norma que crie, extinga, aumente ou reduza a intensidade do direito de punir. Se uma pena passa a ser executada de forma mais rigorosa, a natureza da regra é penal, se a pena não pode ser executada, inviabilizando a satisfação do jus punitionis (pretensão executória), ela também é penal. Sendo penal, não pode retroagir para prejudicar o agente. Esse já era o posicionamento adotado em nosso Curso de Processo Penal:

“Considera-se penal toda e qualquer norma que afete, de alguma maneira, a pretensão punitiva ou executória do Estado, criando-a, extinguindo-a, aumentando-a ou reduzindo-a. Assim, uma norma que incrimina um novo fato tem caráter penal, pois está criando o direito de punir para o estado, com relação a esse fato (…). Processual é a norma que repercute apenas no processo, sem respingar na pretensão punitiva. É o caso das regras que disciplinam a prisão provisória, proibindo a concessão de fiança ou de liberdade provisória para determinados crimes, ampliando o prazo de prisão temporária ou obrigando o condenado a se recolher à prisão para apelar da sentença condenatória” [1].

No que tange à aplicação do princípio da imediatidade da lei processual, Aury Lopes Jr. recorre à distinção entre leis penais puras, leis processuais puras e leis mistas, afirmando:

“Por fim, existem as leis mistas, ou seja, aquelas que possuem caracteres penais e processuais. Nesse caso, aplica-se a regra do Direito Penal, ou seja, a lei mais benigna é retroativa e a mais gravosa não. Alguns autores chamam de normas mistas com prevalentes caracteres penais, eis que disciplinam um ato realizado no processo, mas que diz respeito ao poder punitivo e à extinção da punibilidade” [2].

Ao conceituar normas processuais penais materiais, Guilherme de Souza Nucci afirma:

“São aquelas que, apesar de estarem no contexto do processo penal, regendo atos praticados pelas partes durante a investigação policial ou durante o trâmite processual, têm forte conteúdo de direito penal. E referido conteúdo é extraído de sua inter-relação com as normas de direito material, isto é, são normalmente institutos mistos, previstos no Código de Processo Penal, mas também no Código Penal, tal como ocorre com a perempção, o perdão, a renúncia, a decadência, entre outros (…). Uma vez que as regras sejam modificadas, quanto a um deles, podem existes reflexos incontestes no campo do direito penal. Imagine-se que uma lei crie nova causa de perempção. Apesar de dizer respeito a situações futuras, é possível que, em determinado caso concreto, o querelado seja beneficiado pela norma processual penal recém-criada. Deve ela ser retroativa para o fim de extinguir a punibilidade do acusado, pois é nítido o seu efeito no direito material (art. 107, IV, CP)” [3].

Permitir que o poder público satisfaça sua pretensão punitiva tem caráter inequivocamente penal. Assim, mesmo que os novos dispositivos fossem aplicáveis a brasileiros natos, na hipótese do crime cometido por Robinho — anterior ao início da vigência das novas regras, a lei jamais poderia retroagir para prejudicar o agente. A Lei de Migração, que supostamente abriria a possibilidade de cumprimento de pena privativa de liberdade resultante de sentença estrangeira em solo brasileiro, data do ano de 2017, muito posterior à data do cometimento do crime, que se deu 2013. Por se tratar de norma penal, que interfere no jus puniendi estatal, está sujeita ao princípio constitucional insculpido na CF, artigo 5º, XL: “A lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”.

Para quem entende que os novos dispositivos têm natureza híbrida, a consequência será a mesma, sempre a prevalecer o caráter penal sobre o meramente processual ou procedimental.

Há que se dizer, por derradeiro, que não existe tratado bilateral entre Brasil e Itália que preveja a execução de condenações criminais, uma vez que o Acordo de Cooperação Judiciária em matéria penal entre os dois países, em seu artigo 1º, § 3º, diz que: “a cooperação não compreenderá a execução de medidas restritivas de liberdade pessoal nem a execução de condenações”.

Robinho, então, ficará impune? Não, mas terá de ser processado como qualquer outro brasileiro. A alternativa será a aplicação do artigo 7º do CP, o qual admite a extraterritorialidade da lei penal brasileira, consistente na aplicação da lei brasileira a crimes cometidos fora do Brasil (ficam sujeitos à lei brasileira, embora cometidos no estrangeiro).

Uma das hipóteses de extraterritorialidade é a de brasileiro que comete crime fora do Brasil, incidindo o chamado princípio da personalidade ativa, exatamente a hipótese de Robinho. O processo terá que ser reaberto no Brasil, submetido aos princípios da ampla defesa, contraditório e devido processo legal, retomando-se a persecução penal desde seu início. Há tempo suficiente para isso, já que o crime prescreverá somente em 2033, considerando o prazo prescricional de 20 anos, correspondente à pena máxima prevista para o estupro coletivo de vulnerável (CP, artigo 217-A, § 1º, c.c. artigo 226, IV, a, e artigo 109, I). O clamor popular ou os reclamos da mídia por notícia não podem se sobrepor à segurança jurídica e aos princípios constitucionais.

[1] CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal, 27ª edição, São Paulo, Ed. Saraiva, 2020, p. 96/97.

[2] LOPES JR. Aury. Direito Processual Penal, 18ª edição, São Paulo, Ed. Saraiva, 2021, p. 124.

[3] NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de Direito Processual Penal, 18ª edição, Rio de Janeiro, Ed. Forense, 2021, p. 166.

 

Fernando Capez, procurador de Justiça do MP-SP, mestre pela USP, doutor pela PUC, autor de obras jurídicas, ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP, presidente do Procon-SP e secretário de Defesa do Consumidor.

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