Crimes licitatórios e os princípios gerais do Direito Penal

Compartilhe

Tendo a persecução do interesse público como seu principal objetivo, a Administração Pública vale-se de serviços e bens oferecidos por particulares na realização de obras, locação de imóveis, fornecimento de bens e prestação de serviços, sendo essa a razão elementar dos contratos administrativos. Visando a impedir que a liberalidade do administrador prejudique os interesses da coletividade, a licitação constituiu-se como o instrumento pelo qual a Administração permite que os interessados em contratar com o poder público apresentem suas propostas, e, por consequência, seleciona a mais vantajosa aos interesses da sociedade.

Considerando a natureza jurídica do instituto e o objetivo que o preordena, conceitua-se a licitação “como o procedimento administrativo vinculado por meio do qual os entes da Administração Pública e aqueles por ela contratados selecionam a melhor proposta entre as oferecidas pelos vários interessados, com dois objetivos — a celebração do contato, ou a obtenção do melhor trabalho técnico, artístico ou científico” [1]. Sua relevância para o ordenamento jurídico é demonstrada por sua previsão constitucional. Diversamente do ocorrido nas Cartas anteriores, a atual destaca em seu artigo 22, XXVII, ser de competência privativa da União legislar sobre “normas gerais de licitação e contratação, em todas as modalidades, para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, obedecido o disposto no artigo 37, XXI, e para as empresas públicas e sociedades de economia mista, nos termos do artigo 173, §1º, III”. Por sua vez, o artigo 37, XXI, nos apresenta o princípio da obrigatoriedade de licitação ao estabelecer que, tirante as hipóteses legais, “as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes”.

Recente inovação legislativa de abril de 2021 criou o Estatuto de Licitações e Contratos (ELC), tornando-se a base legal que estabelece as normas gerais de licitações e contratos com as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios (artigo 1º). Conforme o mandamento contido no art. 193, II, ficarão revogadas em 1º de abril próximo a Lei nº 8.666/93 (lei anterior), a Lei nº 10. 520/2002 (pregão) e a Lei nº 12.462/2011 (regime diferenciado de contratações — RDC), podendo, até lá, a Administração optar pela aplicação da lei nova ou das antigas, desde que a escolhida seja diretamente mencionada no edital (artigo 191).

De modo geral, as licitações e os contratos administrativos são edificados sobre os fundamentos da moralidade administrativa, consistente na honestidade, lealdade e boa-fé no trato com os administrados, descartando-se qualquer tipo de conduta desonesta, maliciosa ou ardilosa que estabeleça privilégios ou desvantagens entre os particulares, bem como na igualdade de oportunidades, possibilitando a participação de todos no pleito, desde que cumpridores de requisitos básicos. Seus princípios coincidem com os elencados na CF, 37, “Caput” (legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência), acrescidos dos princípios da vinculação ao edital, julgamento objetivo, competitividade, interesse público, razoabilidade, motivação, planejamento, segregação de funções e desenvolvimento sustentável.

Em fenômeno jurídico denominado continuidade típico-normativa, o Estatuto de Licitações e Contratos (Lei nº 14.133/21) deslocou para o Código Penal os crimes licitatórios. Tais delitos estavam previstos entre os artigos 89 a 108 da Lei nº 8.666/93, e em virtude da nova lei foram revogados e realocados no capítulo que se refere aos crimes praticados por particular contra a Administração, entre os artigos 337-E e 337-P. O tema ainda é pouco estudado com a devida atenção por doutrina e jurisprudência, especialmente as relações entre a responsabilidade penal e a responsabilidade administrativa, tendo em vista que um suposto ilícito praticado poderá ensejar na abertura de procedimento administrativo e processos criminal e cível, por improbidade administrativa.

O direito penal no Estado democrático de Direito sustenta-se por princípios basilares que devem conduzir o legislador na criação da norma, e o magistrado, na sua aplicação ao caso concreto. Esses princípios têm como objetivos preservar a maior liberdade individual, limitar o poder punitivo do Estado e tutelar os interesses mais importantes da sociedade. Quanto mais comportamentos são criminalizados, menor será o espaço de ação do indivíduo. É por essa razão que condutas com um mínimo grau de ofensividade podem ser criminalizadas, pois, do contrário, haveria uma indevida intervenção do poder público na liberdade de ação dos cidadãos [2].

Destacam-se, assim, alguns princípios do direito penal que orientam a atividade dos poderes Legislativo e Judiciário: legalidade, ofensividade, subsidiariedade, fragmentariedade e proporcionalidade. Há outros princípios tão importantes quanto, porém, discorrer-se-á sobre esses mais fulcrais.

Insculpido na CF, artigo 5º, XXXIX e no CP, artigo 1º, o princípio da legalidade constitui-se como verdadeira garantia fundamental do indivíduo, uma vez que somente serão passíveis de punição as ações previamente definas em lei como criminosas, impedindo qualquer tipo de ato despótico do Estado que mitigue liberdades. Trata-se de proteção contra qualquer forma de tirania e arbítrio dos detentores do exercício do poder, capaz de lhe garantir a convivência em sociedade, sem o risco de ter sua liberdade cerceada pelo Estado, a não ser nas hipóteses previamente estabelecidas em regras gerais, abstratas e impessoais [3]. A lei penal também deve ser prévia, clara, exata e estrita para possibilitar ao indivíduo tomar conhecimento do seu caráter ilícito, ou seja, do que é e não é permitido fazer, cabendo ao magistrado analisar no caso concreto se, de acordo com as especificidades do autor e das condições do delito, era possível o agente conhecer o conteúdo da norma e, por ventura, a incidência de erro sobre a ilicitude da ação.

O princípio da ofensividade determina que não há crime se a conduta praticada ao menos não oferecer um perigo concreto, real, efetivo e comprovado de lesão ao bem jurídico. Sua principal função consiste na limitação da pretensão punitiva do Estado, de modo que não haverá proibição penal sem um conteúdo ofensivo a bens jurídicos.

Por sua vez, o princípio da subsidiariedade atribui ao direito penal o caráter de ultima ratio na tentativa de resolução dos conflitos. Somente haverá legitimidade para a intervenção do direito penal quando as outras esferas do Direito não foram suficientes para dar fim ao caso e pacificar as partes. Desta forma, verifica-se que o direito penal não se constitui como o único mecanismo de controle da sociedade, tendo em vista que o Estado deverá se utilizar das esferas cível e administrativa na tentativa de coibir a ação e punir os agentes. A prioridade para a resolução das questões criminais deve ser dada para outras esferas do direito, privilegiando a informação, educação, ressocialização, implementação de políticas públicas que garantam os direitos fundamentais do indivíduo, composição amigável de conflitos e aplicação de penas alternativas. Merece destaque o que se denomina de direito administrativo sancionador, procedimento punitivo exercido pelo Poder Executivo, que mesmo com a garantia do contraditório e ampla defesa, estabelece rito mais célere.

O princípio da proporcionalidade impõe a necessidade de a lei penal ser necessária e adequada para a resolução de um determinado caso, sendo as eventuais sanções previstas proporcionais ao perigo de dano ou dano efetivo causado. Toda incriminação gera um ônus social decorrente da imposição de penas. Por outro lado, se ganha a proteção ao bem juridicamente tutelado pelo tipo. Assim, o balanceamento perfeito entre a ameaça da punição e a proteção do Estado a bens relevantes perfazem uma relação proporcional de perda de liberdade e garantia de segurança.

Os bens jurídicos protegido pelos crimes licitatórios são a lisura, transparência, dignidade, honestidade e eficiência no trato da coisa pública, consubstanciando-se em verdadeira sobreposição dos interesses públicos sobre os privados. Nesse sentido, esclarece Cezar Roberto Bittencourt: “É a garantia da respeitabilidade, integridade e moralidade das contratações públicas (…). Visa a, acima de tudo, proteger a lisura, transparência e igualdade de tratamento na contratação pública, impedindo que a interferência de interesses estranhos (…) possam interferir na retidão do processo licitatório, que, certamente, comprometeria a isonomia concorrencial” [4].

É tardio o ingresso do Código Penal no macrossistema de proteção aos interesses públicos, especificamente no que tange aos delitos cometidos em licitações e contratos administrativos. Juntamente com o ELC e a Lei nº 7.347/85 (Ação Civil Pública), os crimes carreados no Capítulo II-B do Título XI ganham referencial importância no mundo contemporâneo, onde a concepção moderna de estado convida os particulares a participar da administração pública, explorando economicamente os serviços públicos, porém, assumindo o risco da atividade. Garantir o bom funcionamento das licitações, necessariamente recai na reprimenda penal dos autores dos delitos.

 

Coluna Seus Direitos
Fernando Capez
Procurador de Justiça do MP-SP, mestre pela USP, doutor pela PUC, autor de obras jurídicas, ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP, presidente do Procon-SP e secretário de Defesa do Consumidor.

 


Compartilhe