Ciclo de Polícia: Um problema não resolvido, ainda.
Desde a antiguidade a “atividade policial” foi exercida como instrumento de controle social, enquanto a existência da Polícia como instituição não ultrapassa quatro séculos.
Foi o longevo Luís XIV, o Rei Sol, quem estabeleceu, em 1667, na França, a Polícia como instituição prestadora de serviços de ordem pública em Paris, depois amplamente copiada em todo o mundo.
Em 1792, agora na França revolucionária era criada a dicotomia funcional do ciclo da atividade policial. Uma Polícia administrativa/ostensiva e outra judiciária/investigativa. Esse modelo se expandiu por vários países, até achar um confrontante, a Inglaterra da Rainha Vitória, em 1829.
No Brasil a atividade policial esteve, desde a sua gênesis, ancorada por um forte modelo guerreiro, patrimonialista e sectário (GPS). As milícias e as ordenanças da época da Colônia se transvestiram, no século XIX, para o formato de uma Polícia Militar e outra Civil, ainda hoje existente, refletindo o “sistema francês de polícia”, desenvolvido pós revolução.
Na transposição do modelo colonial para o imperial, o domínio das Câmaras municipais perdeu espaço para os governos provinciais. Assim, em 1831, com o fim da Guarda Real de Polícia na Corte, e depois, em 1832, com o advento do Código Criminal do Império tornou-se visível a instalação da dualidade do ciclo policial.
Entre as décadas de 30 e 60 do século XIX, surgiram os Chefes de Polícia, os Comandantes das Guardas provinciais, os Delegados e Subdelegados de Polícia, sendo criado para suprir a ausência geográfica da autoridade judicial, o “religioso” inquérito policial (IP), ainda hoje, amontoados de papéis que superlotam as prateleiras das delegacias e fóruns Brasil afora.
Em 27 de janeiro de 1866, através do Decreto 3598, na capital do Império, apareceu a primeira referência legal a dois corpos policiais. Eis o que rezava o artigo 1º do citado normativo legal: “A força policial da Côrte será composta de um Corpo militar e de um Corpo paisano ou civil”.
Com as Guardas provinciais, depois Força Pública e, finalmente, Polícias Militares, a partir de 1934, sob o controle do Exército, o modelo de “Gendarmaria” tornou-se protuberante na área da segurança pública brasileira, sendo que a existência da Polícia Civil só veio a se consagrar constitucionalmente em 1988, tendo antes disso, a investigação policial sido uma atribuição quase sempre delegada a oficiais e praças das Polícias Militares, além de advogados, fazendeiros e representantes indicados por políticos locais, as vezes sem qualquer tipo de formação profissional.
Portanto, existem amarras seculares que prendem o desenvolvimento da prestação de serviços pelos órgãos constitucionais de segurança pública, sendo que funcionalmente, o ciclo incompleto de polícia é ponto nodal desse imbricado modelo policial, existente, além do Brasil, somente em Guiné Bissau, na África.
Destaca-se que o ciclo completo de polícia é um modelo de organização das atividades policiais que visa garantir a efetividade e eficiência na prestação de serviços de segurança pública. Esse modelo consiste em um conjunto de etapas que vão desde a prevenção do crime até a investigação e punição dos infratores, passando pelo policiamento ostensivo, atendimento às ocorrências e investigação criminal.
A ideia por trás do ciclo completo de polícia é que uma mesma instituição seja responsável por todas as etapas, a fim de que haja uma maior integração e coordenação das atividades, o que pode resultar em uma melhor resposta ao crime e na redução e controle da violência criminalizada, através da otimização do tempo-resposta e de procedimentos, muitas vezes replicados, desnecessariamente.
No entanto, a implementação do ciclo completo de polícia é complexa e pode ser afetada por diversos fatores culturais, corporativistas e, ainda, pela falta de investimento em capacitação e tecnologia, entre outros. Além disso, há críticas ao modelo, principalmente no que se refere ao poder excessivo que pode ser dado às forças policiais, o que pode levar a violações de direitos humanos e abusos de poder.
Em relação à ineficiência da segurança pública, é importante destacar que esse é um problema complexo e multifacetado, que envolve não apenas questões ligadas à polícia, mas também a fatores como a desigualdade social, a falta de investimento em políticas públicas de prevenção ao crime, as falhas do sistema judiciário, conforme ensina Manuel López-Rey.
Assim, especialistas apontam a necessidade de se investir em abordagens preventivas e integradas de ordem pública, que envolvam não apenas a Polícia, mas também outras instituições e a participação interativa da sociedade civil. Essas abordagens podem incluir ações de educação, cultura, saúde e desenvolvimento social, que busquem fortalecer a resiliência das comunidades e reduzir as condições que favorecem a violência e a criminalidade.
É importante ressaltar que a segurança pública é uma responsabilidade compartilhada entre o Estado e a sociedade, e que a construção de uma cultura de paz e segurança envolve o engajamento de todos os atores sociais, além de um compromisso com a promoção dos direitos humanos e o fortalecimento da democracia.
Para alguns doutrinadores, em especial Valter Foleto Santin, com o advento da Carta de 1988, deixou de existir a clássica divisão, surgida na França em 1792, de polícia administrativa e polícia judiciária. Hoje, se desenham como funções executivas de segurança pública: a prevenção, a repressão, a investigação, a cooperação (judiciária e comunitária), e por fim, a vigilância de fronteiras.
Assim, segundo Santin, com as novas funções constitucionais de segurança pública, instituídas em 1988, pode-se decretar o fim da dualidade do ciclo de polícia, abrindo-se espaço para uma nova modelagem no fazer cotidiano dos órgãos de segurança pública, conforme assevera o Relatório Sistêmico de Segurança Pública do Tribunal de Contas da União de 2016, que diz: “Assim, ante o colapso continuado que se vem observando no sistema de segurança pública do Brasil”.
Enfim, a máxima maquiavélica de que “se os tempos mudam e os comportamentos não se alteram, então será a ruina” é atual quando se fala em modelo e ciclo policial no Brasil, ainda dicotômico e ineficiente no atendimento aos anseios, necessidades e expectativas da cidadania.
Professora Ester Zappavigna Monteiro Costa
Advogada e Mestra em Segurança Pública
Professor Júlio Cezar Costa
Coronel da PMES e Idealizador Nacional da Polícia Interativa
Associado Sênior do Fórum Brasileiro de Segurança Pública