A relevância das provas digitais para o Direito contemporâneo
Partindo da premissa de que o processo é o meio jurídico pelo qual busca-se reconstituir a existência e as peculiaridades de um fato, as provas serão os instrumentos pelos quais se dará tal reconstituição. Nesse aspecto, por intermédio das provas as partes buscarão interferir na convicção do julgador demonstrando os elementos constitutivos, extintivos, modificadores e impeditivos do direito, bem como o nexo causal entre a ação e o resultado. No âmbito penal, a prova tem o condão de comprovar a existência de um crime e os indícios de sua autoria, como também as motivações e o modus operandi do autor.
O objetivo do corpo probatório trazido nos autos é interferir decisivamente no convencimento do julgador, demonstrando que os fatos narrados e o pedido apresentado guardam intrínseca relação com o mandamento legal. Assim, é possível dizer que a cognição do magistrado será sempre indireta, por meio de testemunhas, perícias, vídeos, documentos, laudos, captações ambientais, gravações, dentre outros.
Consagrado pela Constituição, no sistema acusatório as partes produzem as provas visando convencer o julgador da plausibilidade de seus argumentos; enquanto no já superado sistema inquisitorial o juiz, ex officio, persegue os elementos probantes essenciais para a justificação de sua decisão. O sistema acusatório, portanto, demonstra a natureza constitutiva da convicção do magistrado, ao passo em que o sistema inquisitorial apresenta natureza justificatória de uma convicção já formada, preexistente.
No que tange à natureza das provas nos sistemas acusatório e inquisitorial, Aury Lopes Júnior entende que nosso atual ordenamento jurídico adotou o sistema neoinquisitorial, tendo em vista que nele são mantidos mecanismos de obtenção de provas diretamente pelo juiz: “O modelo brasileiro é o neoinquisitorial, pois, ao manter a iniciativa probatória nas mãos do juiz (CPP, art. 156), observa o princípio inquisitivo. Considerando que a Constituição desenha um processo penal acusatório, deve-se buscar a máxima conformação constitucional, afirmando a substancial inconstitucionalidade desses dispositivos que permitem a produção de provas de ofício pelo juiz” [1].
Principiologicamente, a prova deverá ser produzida sob a garantia da jurisdição, sendo observado o direito ao contraditório e ampla defesa do acusado perante um juiz natural. A CF, artigo 5º, LVII consagrou o princípio da presunção de inocência, sob o qual ninguém poderá ser considerado culpado antes de sentença penal condenatória transitada em julgado, impondo a todos os envolvidos no processo o dever de urbanidade, inclusive com o réu, sendo vedado qualquer tipo de publicidade que o estigmatize ou interfira na imparcialidade de seu julgamento.
Corolário do devido processo legal, o direito de defesa e o nemo tenetur se detegere deve garantir a presença de profissional técnico durante todas as fases de produção e apresentação de provas. Dele decorre o contraditório e o momento de defesa, princípio pelo qual é assegurada a participação das partes em todos os atos de instrução, dando a possibilidade de manifestação na postulação, admissão, produção e valoração da prova.
Presente no CPP, artigo 399, §2º, o princípio da identidade física do juiz determina que aquele que presidir a instrução deverá, via de regra, ser o mesmo que proferirá a sentença. Sua razão de existir se dá pela proximidade entre o juiz da instrução e as provas apresentadas. Aquele que diretamente teve contato com as testemunhas, interrogou o acusado, ouviu os peritos e acompanhou todas as fases processuais, por óbvio, tem melhor condição de discernir sobre os fatos e sentenciar adequadamente. Tal regra é fundamental para a concretização do princípio do livre convencimento motivado, ou persuasão racional, adotado pelo CPP, artigo 155, que não estabeleceu regras fixas e valorativas de julgamento, tampouco hierarquia entre as provas. Caberá ao juiz modular sua convicção através da livre apreciação das provas. Sendo a prova lícita, válida e submetida ao contraditório, poderá o juiz valorar livremente os elementos trazidos aos autos no momento da sentença.
O modus vivendi da sociedade atual tem como característica marcante a interconectividade entre as pessoas, fazendo com que os ambientes virtuais e as plataformas digitais recebam informações pessoais (dados sensíveis) dos cidadãos e sejam caixa de ressonância de sua interação. Desse modo, não apenas os nexos constitutivos de sociabilidade são replicados no ambiente digital, como podem servir eles próprios de comprovação de ações realizadas dentro ou fora dele. Ganha referencial importância, portanto, a prova digital e sua adequação ao ordenamento, vez que imprevisível o advento da internet à época da elaboração do Código de Processo Penal.
A prova digital pode ser conceituada como o elemento jurídico apto a demonstrar a ocorrência ou não de um fato, delimitando suas características e circunstâncias, bem como os sujeitos a ele envolvidos e a dinâmica das ações. Renan Thamay e Maurício Tamer a define como o instrumento jurídico vocacionado a demonstrar a ocorrência de um fato e suas circunstâncias, tendo ele ocorrido total ou parcialmente em meios digitais ou, se fora deles, esses sirvam como instrumento para sua demonstração [2].
O que difere a prova digital das demais é que o ambiente por ela demonstrado é o virtual, ou seja, um ato que tenha como suporte a utilização do meio digital. Para além de tal possibilidade, a prova digital também terá serventia para os fatos ocorridos fora dos ambientes virtuais, mas que sua comprovação poderá ser feita por meios digitais.
Os fatos ocorridos no meio digital com comprovação digital estão presentes no cotidiano da sociedade contemporânea. Mensagens de WhatsApp, Telegram e perfis no Instagram e Facebook são mídias utilizadas para o desenvolvimento das relações interpessoais sem as quais seria impossível compreender a vida moderna. O mesmo ocorre no ambiente de trabalho através do tratamento de dados, cópias de softwares, disponibilização de vídeos e mensagens na intranet. Contudo, a prova digital também tem valia para os atos ocorridos fora do ambiente virtual, tais como a ata notarial lavrada a partir da constatação pelo tabelião de foto em mídia social em que constam juntos um colaborador de uma empresa e um diretor da empresa concorrente, mostrando o conluio entre ambos, ou a comprovação de tráfico de entorpecentes (recebimento de carga, distribuição, venda e contabilidade) por mensagens de WhatsApp.
As provas digitais também ganham relevo em uma ação reparatória por danos morais e materiais decorrente de postagem mentirosa ou desonrosa em uma rede social ou em vídeo postado no YouTube. Preceitua o CC, artigos 186, 187 e 927, que aquele (pessoa física ou jurídica — CC, artigo 52 e Súmula nº 227, STJ [3]) que sofrer gravame em função de ato ilícito poderá buscar a devida reparação, sendo que para tal, deverá comprovar o ato e o prejuízo, perpassando, necessariamente, pela preservação do conteúdo infamante publicado e a identificação do autor da postagem. Repercute, também, na esfera trabalhista, onde será possível comprovar a prática de assédio sexual ou moral por parte do empregador em relação ao empregado.
No âmbito criminal, a utilização de qualquer artifício técnico (dentre os quais um dispositivo digital) que retire ou diminua a vigilância da vítima sobre seus bens é fundamental para a caracterização de um estelionato ou de um furto mediante fraude (CP, artigo 155, § 4º, II). É possível, também, a prática do crime de extorsão (CP, artigo 158) se a vantagem patrimonial advier de forma constrangedora ou violenta. Exemplo disso é a prática do ransomware, consistente no domínio da base de dados da vítima, cuja liberação ficará condicionada ao pagamento de um determinado valor.
Usualmente os meios digitais são os preponderantes no cometimento de crimes contra a honra. Não são raras as vezes em que nos deparamos com postagens, textos ou fotos que atribuam a alguém o cometimento de um crime (CP, artigo 138), conduta desonrosa (CP, artigo 139) ou pecha infamante (CP, artigo 140). Porém, a maior utilidade das provas digitais talvez esteja presente no delito tipificado no CP, artigo 147-A (perseguição), inserido no Código Penal com o advento da Lei nº 14.132/21.
Popularmente conhecido como stalking, o crime de perseguição reiterada consiste na interferência ou limitação da liberdade ou privacidade da vítima, mediante ameaça física ou psicológica. Pode ser cometido por qualquer meio, inclusive pela internet, constituindo no chamado cyberstalking. Positiva a inovação legislativa, tendo em vista que o avanço das tecnologias e o uso generalizado das redes sociais trouxeram novas formas de crime, sendo necessário o aperfeiçoamento do Código Penal para dar mais segurança às vítimas de um crime que pode começar online e migrar para a perseguição física.
Antes da Lei nº 14.132/21 a prática consistia em mera contravenção penal (LCP, artigo 65) de perturbação da tranquilidade alheia, com pena de detenção de 15 dias a 2 meses e multa. Além de estabelecer nova pena (reclusão de 6 meses a 2 anos, e multa), o tipo prevê causa de aumento de pena de 1/2 caso o crime seja praticado contra criança, adolescente, idoso, mulher em razão de gênero, mediante concurso de duas ou mais pessoas e emprego de arma de fogo.
Mensagens incessantes, chamadas telefônicas intermináveis, envios de e-mail, rastreamento da vítima por geolocalização, invasão de redes sociais, obtenção ilegal de dados pessoais são as formas iniciais de perseguição que podem resultar em atos mais gravosos. Nesse sentido, a prova digital será fundamental para a comprovação do delito, demonstrando que as ações do autor visavam, desde o princípio, intimidar a vítima por meio de abuso psicológico.
[1] LOPES JR. Aury. Direito processual penal. 18ª edição. São Paulo. Ed. Saraiva, 2021, p. 471.
[2] THAMAY, Renan e TAMER, Maurício. Provas no direito digital – conceito da prova digital, procedimentos e provas em espécie. 2ª edição. São Paulo. Ed. Thomson Reuters, 2022, p. 33.
[3] Súmula 227, STJ: A pessoa jurídica pode sofrer dano moral.