Esquecimento: Direito à informação x Direito de proteção da vida privada

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Uma das discussões mais interessantes que encontramos no âmbito jurídico, não só no Brasil, como no mundo, diz respeito à proteção da privacidade ao longo do tempo. Com o avanço tecnológico e a possibilidade de armazenamento ilimitado de dados individuais em nuvem, o direito à privacidade ganhou nova dimensão. Além das garantias dos sigilos bancário, fiscal e telefônico (todos decorrentes da proteção da privacidade), a doutrina e a jurisprudência nos apresentam o denominado “Direito ao Esquecimento” (Right to be let Alone, Right to be forgotten).

Trata-se de questão surgida nos dias atuais em razão da permanência de matérias e reportagens na rede mundial de computadores. Com o desenvolvimento da informática e da internet a partir dos anos 2000, o Direito passou a enfrentar novas problemáticas que antes seriam inimagináveis. Sem a internet, os veículos de comunicação utilizavam basicamente as mídias televisiva ou radiofônica na difusão de um fato, sendo que por maior que fosse a relevância da emissora ou radiodifusora, a permanência da matéria na memória popular era restrita em função da sucessão dos acontecimentos do cotidiano.

Todavia, com a internet, o sistema de substituição de pautas deu lugar ao armazenamento quase eterno de imagens, vídeos e reportagens. Não são raras as vezes que um cidadão não se vê livre de um estigma do passado, haja vista que uma simples busca na internet rememora notícias, fotos ou reportagens desabonadoras, causando perpétua danação.

Do ponto de vista histórico, a primeira menção a este direito se deu nos Estados Unidos, em 1931, no caso Melvin v. Reid, no qual uma prostituta foi acusada e absolvida de homicídio. Passados alguns anos, a película “The Red Komono” retratou o caso e a pessoa envolvida tentou barrar na Justiça a distribuição do filme. Nesse caso, o Direito norte-americano se viu dividido entre a garantia da liberdade e vida sadia da autora, e o direito de liberdade de expressão (free speech), garantido pela 1ª Emenda.

Em meados da década de 1990, em caso referente a veiculação de material jornalístico que envolvia pessoa judicialmente absolvida em assassinatos de judeus durante a 2ª Guerra Mundial, decidiu a Suprema Corte da Holanda que, ante a ausência de interesse público, o direito à manutenção da boa reputação e o de ser esquecido devem prevalecer sobre o direito da imprensa e de liberdade de expressão. Entendeu a Corte que naquele caso, a interferência no direito à liberdade de opinião da imprensa era admissível, vez que protegiam a honra, reputação e demais direitos do ofendido.

“(…) o exercício desta liberdade, porquanto implica deveres e responsabilidades, pode ser submetido a certas formalidades, condições, restrições ou sanções, previstas pela lei, que constituam providencia necessárias, numa sociedade democrática, para a segurança nacional, a integridade territorial e a segurança pública, a defesa da ordem e a prevenção do crime, a proteção da saúde ou da moral, a proteção da honra ou dos direitos de outrem, para impedir a divulgação de informações confidenciais, ou para garantir a autoridade e a imparcialidade do poder judicial” [1]. (Suprema Corte da Holanda, Decisão 15.549, julgado em 06/01/1995).

Já em 2014, o Tribunal de Justiça da União Europeia determinou que um site de buscas da internet retirasse da lista de resultado qualquer menção do nome de Mário Costeja Gonzáles que estivesse vinculado ao leilão de imóveis para pagamento de dívidas com a seguridade social. O leilão constava na versão eletrônica do jornal La Vanguardia (1998), sendo que todas as vezes que o nome do autor era buscado, a notícia aparecia e sua imagem sofria abalo.

Em 2016, a Corte de Cassação da Bélgica julgou procedente pedido elaborado por um médico que se envolveu em um acidente de trânsito, em 1994, enquanto guiava um automóvel embriagado. O pedido do autor consistia na anonimização de artigo digital do jornal Le Soir que descrevia o acidente, substituindo toda menção de seu nome por uma letra. Por fim, entendeu a Corte daquele país que mesmo com a retirada do nome do autor dos registros criminais por dirigir embriagado (décision de réhabilitation judiciaire), a manutenção do nome em registros jornalísticos digitais feria o direito à vida privada.

Do ponto de vista doutrinário, André de Carvalho Ramos entende o Direito ao Esquecimento como ressonância do direito à intimidade, consistindo na faculdade de se exigir ou não a publicização de fato relacionado à pessoa em face do decurso temporal ou da falta de interesse da coletividade. Para o doutrinador, o Direito ao Esquecimento possui duas características, quais sejam:

“(…) a de não permitir a divulgação (right of oblivion) e a de buscar a eliminação de fato registrado, que, em virtude do tempo passado, não pode ser mais considerado público, exigindo a autorização do titular que conste do banco de dados (right of erasure, autodeterminação informativa).” [2]

Viviane Nóbrega Maldonado compartilha do mesmo entendimento, apontando como um dos parâmetros de sua aplicação a ausência do interesse público da informação em função do decurso do tempo, afirmando: “O interesse público não se confunde com o interesse do público, este, no mais das vezes, entendido como aquele que se exaure em aspectos da mera satisfação pessoal em termos de curiosidade” [3].

Sobre o tema, assim têm se manifestado nossos Tribunais Superiores:

“(…) há circunstâncias excepcionalíssimas em que é necessária a intervenção pontual do Poder Judiciário para fazer cessar o vínculo criado, nos bancos de dados de provedores de busca, entre dados pessoais e resultados de busca, que não guardam relevância para interesse público à informação, seja pelo conteúdo eminentemente privado, seja pelo decurso do tempo. Nessas situações excepcionais, o direito à intimidade e ao esquecimento, bem como a proteção aos dados pessoais deverá preponderar, a fim de permitir que as pessoas envolvidas sigam suas vidas com razoável anonimato, não sendo o fato desabonador corriqueiramente rememorado e perenizado por sistemas automatizados de busca.” [4]
“(…) o direito ao esquecimento, a despeito de inúmeras vozes contrárias, também encontra respaldo na seara penal, enquadrando-se como direito fundamental implícito, corolário da vedação à adoção de pena de caráter perpétuo e dos princípios da dignidade da pessoa humana, da igualdade, da proporcionalidade e da razoabilidade.” [5]
“(…) o homem não pode ser penalizado eternamente por deslizes do passado pelos quais já tenha sido condenado e tenha cumprido a reprimenda imposta em regular processo penal. Faz ele jus ao denominado “direito ao esquecimento”, não podendo perdurar indefinidamente os efeitos nefastos de uma condenação anterior, já regularmente extinta.” [6]

Em que pese algumas decisões esparsas, foi apenas em fevereiro de 2021 que o Supremo Tribunal Federal enfrentou definitivamente a questão, onde decidiu no RE 1.010.606/RJ, por maioria de votos, que o direito ao esquecimento é incompatível com a Constituição. Contudo, eventuais excessos ou abusos no exercício da liberdade de expressão devem ser analisados de acordo com o caso concreto, levando-se em consideração a garantia constitucional de proteção à honra, imagem e vida privada dos envolvidos.

O tema apresenta especial complexidade por sopesar duas garantias constitucionais: o direito à informação e liberdade de expressão ante ao direito de proteção da vida privada, honra e imagem. Dessa forma, por serem pilares das garantias fundamentais e gozarem de especial relevância junto à sociedade, o conflito entre ambos deve ser analisado com sobriedade pelo julgador, devendo prevalecer aquele que melhor se amoldar às especificidades do caso concreto


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